MAURO
Quatro
anos se passaram da maneira mais tranqüila possível para quem está viajando
pelo espaço em direção a outro planeta. O casal já tivera dois filhos: uma
menina de três anos e um garoto de um. Sarah, a menina, era a imagem da pureza.
Tinha os cabelos negros como o azeviche e um sorriso de arteira, sua pela vivia
corada pelos banhos de luz ultravioleta. O garoto, chamado Martin, tinha a
feição mais séria e era um pouco rechonchudo. Os dois passavam o dia inteiro
brincando.
Durante uma tarde aparentemente comum, a reinação
foi interrompida pelo piscar da luz de alarme que se encontrava junto à tela de
Horácio, que tomava conta das crianças enquanto os pais dormiam. Seguindo a
orientação do cérebro eletrônico, Sarah parou de brincar e foi resignada até o
quarto dos pais avisar sobre o perigo desconhecido.
Vestida
num baby-doll laranja, Maggie chegou
até a tela, sentou-se na cadeira de comando e perguntou:
- O que foi, querido? (Era assim que ela passara a
chamar o enorme autômato, porque Mauro não parecia ter ciúmes dele.)
- Há uma batalha pela frente! - Respondeu Horácio.
- O que?
Maggie deu um pulo da cadeira e, como Horário não
costumava brincar com coisas sérias, foi correndo acordar o marido. Mauro foi
conduzido, meio cambaleante, até a frente da tela, na qual uma enorme
quantidade de números se acumulara como que por mágica.
As crianças assistiam a tudo divertindo-se com a
correria, mas no fundo estavam um pouco preocupadas com o ar sério assumido
pelos adultos.
- Ouça o que Horácio tem a dizer, Mauro.
- Sinto muito incomodá-los logo depois do almoço,
mas meus sensores localizaram duas astronaves alienígenas a algumas centenas de
quilômetros em aparente atitude beligerante uma em relação à outra. Posso
observar grandes jatos de energia destruidora partindo ora de uma, ora de
outra. Não sei porque ainda não nos detectaram. Talvez seus sensores não sejam
tão poderosos quanto os nossos. Gostaria que tivessem uma visão de suas
estruturas externas.
Na mesma hora desapareceram os números da grande
tela e as imagens de duas astronaves surgiram. Deviam pertencer a culturas
diferentes, pois tinham formas completamente díspares. Uma delas parecia uma
esfera negra, enquanto a outra era uma espécie de emaranhado de módulos
conectados uns aos outros, assim como Fobos, e também tinha a coloração puxada
para o cinza claro.
Primeiro pensaram que a melhor opção seria passar
ao largo da batalha, sem se meter na vida dos outros. Horácio sugeriu então um
grande aumento de velocidade, coisa que ainda era possível para casos de
emergência. Assim, mesmo que a Fobos fosse notada e interpelada, ainda haveria
chance de escapar com êxito.
Aprovado o plano, Horácio recomendou que toda a
família tomasse pílulas de sono e se deitasse para dormir. Era importante que,
no caso de um possível confronto, estivessem todos devidamente descansados.
Resmungando contra foguetes, seres extraterrenos e batalhas no espaço, Mauro
foi deitar dizendo que, cansado do jeito que estava, não seriam necessárias
pílulas. Na verdade, sentia tanto sono que poderia dormir os seis anos
restantes de viagem até a Nova Terra.
Os quatro foram acordados pelo altíssimo ruído do
Alerta Vermelho. Mauro saiu de seu quarto resmungando entre dentes as piores
pragas que conhecia. Chegou de pijama mesmo ao posto de combate, que nada mais
era do que o antigo trono do Dr. Harness. Infelizmente não havia sido possível
simplesmente fugir do combate, e agora eles teriam que enfrentá-lo!
Horácio fornecia à Maggie as coordenadas das duas
naves alienígenas, ao mesmo tempo em que mostrava a Mauro as piores cenas que
havia gravado da batalha. Sempre que via uma descarga de energia
particularmente horrível, o ex-mecânico xingava com vontade e era imediatamente
imitado pelas crianças sorridentes que brincavam no chão. Maggie conseguiu captar
os sons das emissões radiofônicas feitas pelos comunicadores internos de uma
das naves. Para sua surpresa, ela ouviu algo estranhamente familiar. Na mesma
hora, pediu para Horácio transmitir a Mauro as conversações que ela
interceptara. A pessoa que falava parecia usar um inglês meio estropiado e
cheio de erros. Intrigada, Maggie perguntou:
- Será que há alguma chance de termos desenvolvido
tal velocidade que estejamos diante de uma nave terrestre do futuro, em alguma
missão de guerra?
- Pode ser – respondeu o computador. – Nesse caso,
os humanos do futuro estão tendo uma dificuldade danada para evitar as granadas
de luz da nave inimiga.
Na tela principal, agora era possível enxergar um
ser humano através dos vidros da nave esférica. Sabiam, portanto, que aquela
nave escura vinha da Terra e seus habitantes eram terráqueos, assim como Mauro
e Maggie.
- Caramba! Que surpresa! Mas na verdade, já
podíamos esperar por isso. Uma hora eles chegariam por aqui – disse Mauro.
- Temos que pensar no que fazer – disse a mulher,
já visivelmente aflita.
- Pensei em uma coisa – falou Mauro. - Eu sugiro
que, quanto estivermos a uma distância um pouco menor de ambas as naves,
disparemos nossos emissores telepáticos com a música mais calma e sublime dos
arquivos. Talvez a “Sonata ao Luar”, de Beethoven. Deve fazer efeito, pois as
duas serão tomadas de surpresa pela emissão e não saberão de onde vem.
Todos concordaram coma sugestão. Quando chegaram a
uma distância segura das duas naves, Fobos fez a poderosa transmissão na direção
da batalha. Maggie ficou na escuta do rádio, captando as ondas sonoras na
freqüência dos intercomunicadores. Ouviu o seguinte diálogo entre as duas
naves:
- Parem com isso! Não sabem lutar como cavalheiros?
Que música é essa?
- Não estamos fazendo nada além de jogar as
granadas de luz! Vocês é que estão enviando essa música para cá!
- Nada disso, tudo é culpa de vocês!
- Já disse que não ligamos música nenhuma! Mas até
que a melodia que vocês enviaram é bonita...
- Isso é verdade, mas não tente mudar de assunto...
A conversa se prolongou por um tempo, enquanto as
hostilidades diminuíam progressivamente. Os capitães das duas naves quiseram
então pela primeira vez saber quais eram as intenções dos inimigos. Parecia que
nesse confronto, ou talvez nessa época do futuro onde estavam, havia um clima
de tensão tão exacerbado que os dois povos não se comunicavam, concentrando-se
somente em destruir o outro. Mas agora era difícil lutar contra a música de
Beethoven, que trazia acordes de paz, harmonia e compreensão entre os seres de
todo o universo.
A transmissão continuou por toda a duração da
“Sonata ao Luar”. Quando a música acabou, os habitantes da Fobos assistiram com
uma certa nostalgia à lenta desaparição das naves, uma para cada lado, como se
seus tripulantes estivessem tristes por não mais ouvir àquela música, mas
aliviados e renovados pela experiência pela qual haviam acabado de passar.
Quando todos achavam que a página já estava virada
e se preparavam para dormir novamente, o alerta no painel de controle disparou
mais uma vez. Mauro olhou para Horácio em busca de uma explicação para mais
aquela preocupação:
- Há o que se chama de um torvelinho temporal na
direção da nave alienígena – esclareceu o computador.
- E o que vem a ser isso, Horácio? - Maggie
indagou.
- Me parece que, se continuarmos a nossa rota
pré-estabelecida, haverá um encontro temporal entre a nossa nave e a dos
alienígenas. Há uma grande agitação de poeira cósmica no rastro da nave deles,
indicando que estão em um tempo ainda por vir para nós. E a grande coincidência
é que o tempo futuro no qual estão vivendo e a localização espacial de sua nave
são exatamente os mesmos que alcançaremos ao seguirmos os cursos planejados de
nossa viagem.
- Minha nossa, Horácio! Isso quer dizer que nós somos
os alienígenas num tempo remoto!
- Puxa vida! - disse Mauro - Como pôde ter
acontecido isso? Por que lutamos contra os terrestres?
- Meus senhores, não devemos sair de nossa rota
agora, pois seria uma manobra um tanto bisonha e improdutiva para nossos objetivos.
- Mas então o que vamos fazer? – perguntou Maggie
- A nave alienígena ainda está há uma longa
distância no futuro, se mudarmos nossa direção, a deles também poderá mudar e
fazer com que nossas tentativas não surtam efeito algum. Recomendo prosseguirmos
com os sensores ligados na direção dos alienígenas permanentemente. É provável
que quando cheguemos mais perto deles, os sensores nos indiquem os específicos
movimentos que devemos fazer, não deixando tempo hábil para que a nave
alienígena também se movimente como conseqüência de nossa própria movimentação.
Creio que os sensores captarão alguma forma de energia do torvelinho, nos
indicando para onde devemos nos mover, a fim de afastarmos o perigo de uma
colisão física. Enfim, precisamos desviar apenas o necessário, sem sairmos de
nossa rota, para não corrermos o risco de ficar vagando no espaço sem direção.
Caso contrário, poderíamos ir de encontro a nós mesmos e acabar numa
encruzilhada tão obscura que impossibilitaria uma mudança de conduta.
Alguns silenciosos minutos se passaram, todos
pensavam na idéia de Horácio mas hesitavam em tomar uma decisão. Até que Mauro
sentou-se na poltrona de frente para a tela e mostrou toda a força especulativa
de sua mente privilegiada. Falou num tom explicativo, como quem expunha uma
teoria ainda incerta:
- Desculpe se eu me intrometo num assunto que não
conheço bem, pois não passo de um bom mecânico. Mas estive escutando algumas
das conversas que você e nosso querido cérebro eletrônico têm travado. Pensei
numa coisa que talvez possa solucionar nossos problemas em relação ao futuro
não muito atraente que acabamos de ver. Corrijam-me se eu estiver errado, mas a
única forma de podermos enxergar a luz provinda de nós mesmos, ou seja, de
termos uma visão da nossa imagem num futuro, seria através de uma janela no
contínuo do Universo Circular, certo?
Maggie concordou com a cabeça, encorajando o marido
a continuar.
- Só assim seria possível nos depararmos conosco do
outro lado do círculo que o universo faz, de acordo com a teoria de Einstein. É
por isso, então, que estamos muito longe de nós mesmos no espaço físico, na
verdade estamos o mais distante possível, a exatamente o tamanho do diâmetro do
universo. Devemos ter conseguido desenvolver uma velocidade relativa entre as
duas naves bem próxima, mas abaixo da velocidade da luz, para que, atingindo o
limite do universo visível, tenhamos nos visto no espelho do cosmos. E os
terrestres acabaram nos perseguindo com tanto afinco que entraram também nessa
vertiginosa viagem do destino. Porém, o encontro com eles talvez não seja um
fator imutável no nosso futuro! Talvez seja simplesmente necessário atingirmos
uma velocidade relativa bem distante em relação aos terrestres, mas ao mesmo
tempo bem próxima da de nós mesmos no futuro. Utilizaríamos assim o registro de
futuro que já temos para podermos evitar o combate.
Um sorriso apareceu na boca de Maggie e na tela de
Horácio. Mauro continuou a falar:
- Bem... nós temos que achar um meio de avisar
nossos semelhantes, quer dizer, nós mesmos no futuro. Ou seja, temos que
descobrir uma forma de transmitir a eles os conhecimentos que estamos extraindo
desse encontro tão importante que presenciamos.
- Mas que forma seria essa? – perguntou Maggie.
- Não sei bem. Horácio terá que nos ajudar com
isso. Precisamos construir algo como um rádio temporal que entre em contato
direto com os bancos de dados da nave, para que, na hora exata em que haja uma
constatação de estarem indo de encontro aos terráqueos num campo de batalha,
esse fato seja revertido. Vocês já repararam que, na realidade, nós já estamos
combatendo os terráqueos pelos simples fato de que nós vimos esse combate no
futuro?
- Sim, Mauro – respondeu Horácio. - Mas você também
não deve se esquecer que na linha do universo físico, tudo o que acontece no
presente é um fato histórico imutável, verificado e visto, constante, embora a
batalha tenha sido presenciada por nós como algo inerente a um futuro nosso, e
todo aquele momento já fazer parte de um tempo passado agora. Assim, há uma tangente
entre passado e futuro, dentro do plano quadridimensional do Universo
Einsteiniano. Isso nos levou a algo como uma dobra no tempo, por isso pudemos
ver literalmente nosso futuro. Deve ter havido uma grande aceleração de ambas
as partes, de nós e nossos semelhantes do futuro, para que essa dobra na
geometria do universo aparecesse. Não será possível enviar os dados da batalha
diretamente para o computador deles devido a essa dobra, mas posso construir um
aparelho de teletransporte espacial e temporal que levará você para dentro da
nave deles!
- Então eu vou levar os dados que colhemos da
batalha, arquivados em um disquete e, quando chegar lá, vou inserir o arquivo
no cérebro eletrônico da nave deles. Assim eles terão o conhecimento que temos.
Claro que isso deve ser feito da maneira mais discreta possível, para não
alarmar os habitantes da nave. Não podemos despertar suspeitas, temos que
deixá-los encontrar as informações em seu computador sem que fiquem sabendo de
nós.
Maggie ficou espantada com o discurso do seu
marido.
- Puxa, Mauro! Você andava meio desligado das
nossas conversas, mas agora se revelou um grande físico! Que maravilha! - disse
a mulher, dando um abraço nele e se dirigindo ao computador. - Tudo isso é
perfeitamente possível, certo Horácio? O que você me diz, querido?
- De acordo com meus cálculos, dentro de exatamente
quatorze horas, uma cápsula de efeito teletransportador ficará pronta. Nosso
único inimigo é a inércia.
Dito e feito. Depois de quatorze horas, Mauro abriu
a escotilha da cápsula teletransportadora e, com um disquete previamente
gravado por Horácio, sumiu e apareceu de repente na frente de uma esplêndida
loura dormindo num quarto. Ficou encantado com a beleza daquela moça, cujos
traços lembravam muito os de Maggie, quase ao ponto de esquecer que ela deveria
ser sua filha no futuro. Recompôs-se, lembrando que não podia ser notado
naquela nave. Deixou o quarto e seguiu silenciosamente até a central de
programação do cérebro eletrônico da nave, o Horácio do futuro.
A tarefa de inserir o disquete no computador sem
ser notado por ninguém foi mais fácil do que imaginara. A família inteira
parecia estar na sua hora de cochilo e Mauro pensou que talvez Horácio tivesse
calculado isso, pois era muita coincidência. Mauro viu que as informações
estavam sendo assimiladas pelo computador com rapidez, e imaginou o que seu
semelhante do futuro pensaria sobre aquilo. Nesses momento, teve a certeza de
que seu eu-futuro acabaria descobrindo facilmente os dados da batalha e os
usaria para estabelecer um rota de fuga. A batalha, agora, não mais se
desenrolaria indubitavelmente. Sentiu ainda que seu semelhante em outro lugar
do tempo perdoaria aquela invasão de privacidade e concordaria com a atitude
que estava tomando agora, provendo a si mesmo no futuro informações valiosas.
De volta à Fobos, Mauro apareceu em meio a uma
nuvenzinha branca, como aquela fumaça de gelo seco, efeito esse que deve ter
sido programado por Horácio para criar um clima. O homem não disse nada e saiu
pomposamente da cápsula, Horácio deveria estar se torcendo de rir por dentro.
- Missão cumprida, queridos! Tudo foi realizado no
maior sigilo. Duvido que nossa pequena invasão seja detectada. Creio que agora
podemos continuar nossa rota em direção ao planeta desconhecido sem que sejamos
incomodados por novos vórtices temporais! Cansei dos problemas provocados pelo
nosso deslocamento em altas velocidades pelo espaço sideral. Pessoalmente, eu
preferia as pistas de corrida lá na Terra!
- Deixe isso para lá, querido. Teremos agora caminho
livre para nosso futuro promissor!
E lá se
foram os habitantes de Fobos, cruzando o universo em busca de uma nova casa e
um pouco de paz.