LET IT BED

Vários artistas brasileiros já haviam convidado Arnaldo para gravar um CD. Mas colocar Arnaldo dentro de um estúdio, com pressões de tempo e orçamento, não era exatamente a química mais adequada. “O processo de criação do Arnaldo era o de anotar idéias no caderninho. Ele tem várias capas de Let it Bed (o título existe há 14 anos). Mas tinha aquela coisa embutida, de não conseguir botar para fora”. Junta-se à essa dificuldade a vontade de fazer tudo sozinho. “Mas ele precisava de um engenheiro de som, digamos”, comentou ainda Lucinha.

A idéia de finalmente gravar Let it Bed aconteceu quando John, da banda Pato Fu, foi a Juiz de Fora montar um PC para Arnaldo com vários programas de áudio. John e Rubinho Trol (2) começaram a mostrar ao Arnaldo as possibilidades dessas novas tecnologias, recursos que há alguns anos só eram possíveis em estúdios caríssimos e agora estavam bem à mão, para serem usados em casa mesmo. “Por isso este disco é o encontro de Arnaldo com esta tecnologia”, explicou John. “Uma coisa era importante para nós”, continuou John. “Não queríamos um CD que soasse como um disco moderninho de música eletrônica com samples do Arnaldo. Isso seria fácil fazer. Queríamos que ele registrasse à sua maneira suas novas canções e depois ajudaríamos a dar um acabamento à altura de seu talento”.

John e Rubinho levaram para o sítio equipamento suficiente para um bom home-estúdio. Logo de cara perceberam que Arnaldo queria tocar de tudo e passava muito rapidamente de um instrumento para outro. Por isso decidiram espalhar microfones por todo o estúdio do sítio, deixando tudo ligado o tempo todo para manter o momento criativo sempre em alta.

“Rubinho trouxe seu PC de Londres. Gravamos usando o software Cubase e uma interface M-Audio Delta 44, que nos permitia gravar 4 canais por vez. O que parece pouco, mas o suficiente para este disco, já que Arnaldo iria tocar tudo, um instrumento por vez”, conta John. “A AKG nos emprestou os microfones e headphones, eu levei preamps, mixer, guitarras e outras coisas. Uma curiosidade é a guitarra Pignose com um alto-falante embutido no corpo, que Arnaldo experimentou e acabou usando em algumas gravações”.

John deu algumas instruções básicas para Rubinho, “apenas para ele não cometer nenhuma gafe tecnológica irreparável”. Mas logo ficou claro que o mais importante era o momento, a atmosfera, a tranqüilidade para que Arnaldo pudesse registrar tudo que quisesse, quantas vezes quisesse e na hora que tivesse vontade. “E isso o Rubinho soube conduzir muito bem”.

“Depois de tudo registrado, voltamos para meu estúdio em BH, onde transpusemos as sessões de Cubase/PC para o sistema do meu estúdio que é Logic Audio/Mac. Lá não gravamos mais nada: apenas acrescentei algumas programações e instrumentos virtuais”, explica John. Tudo foi editado e mixado aos poucos no estúdio de John. “Cada vez que Arnaldo vinha à minha casa ouvíamos tudo e ficávamos mais felizes com o resultado”.

“As músicas feitas aqui em Belo Horizonte, gravadas no Andar Studio, foram mais ou menos no mesmo esquema de Juiz de Fora – têm um clima diferente, principalmente em ‘Ai Garupa’, que é: num estudiozinho, dois garotos gravando seu herói. É emocionante”, completaria John em sua entrevista junto com Rubinho Trol via icq, transcrita mais adiante.

“Para mim foi uma glória o Arnaldo ter vencido esta barreira de compor”, comentou Lucinha. “E os médicos disseram que ele nunca mais iria criar. Mas esta é a prova dos 9: de que o cérebro toma caminhos inusitados e tem uma capacidade de recuperação ainda desconhecida da ciência.”

Arnaldo Baptista fala de Let It Bed, de ciência, dos fãs e do futuro.

(Entrevista via telefone, conexão Londres-Belo Horizonte, novembro de 2003 e janeiro de 2004)

Só depois de um certo tempo gravando alcancei o know how do que eu estava fazendo e pensei: não acredito que estou fazendo algo tão bom. Como diziam os Beatles: with a little help of my friends. Esta ajuda tem sido muito importante nos últimos tempos.

Quando ouvi tudo depois de produzido foi uma espécie de ‘total caixinha de surpresas’. Fizeram de uma forma que o rendimento ficou ótimo: tipo one man band. Outro lado interessante foi o pragmático da letra. O fato de eu ter à minha volta pessoas tão diversas, em termos de filosofia e ideologias, me levou a criar letras na hora buscando um espírito de total conexão.

Também percebi algumas modificações, de falhas no meu instrumental no sentido de buscar uma performance melhor, experimentar mais. Mas o principal mesmo foi o amor: eu posso ter tocado todos os instrumentos neste disco, mas o principal foi ter tocado com amor.

Por trás de algumas canções de Let it Bed

Gurum Gudum: Tem a ver com minha memória, meu avô que tinha 14 filhos, era coronel e construiu o próprio violão. Há muitos anos ouvia o vovô entoar uma música que decorei – pode ter sido uma música antiqüíssima, ou do folclore, ou que ele criou na hora. Então tinha esta parte que encaixei em “Gurum Gudum”. Ele falava de ter uma vida rural e foi isso que tentei colocar na música.

To Burn or not to Burn: Essa música é meu lado de contrabaixista aparecendo com mais destaque: a frase (base) foi a que bateu mais forte no meu coração. A motivação da letra, da filosofia ou o que for chamado – “To Burn or Not to Burn. What is the Question? What?”, tem a ver com Shakespeare: literatura inglesa, teatro e rock’n’roll.

LSD: Esta tem a ver com Bach, que minha mãe gostava muito. Na época dele era difícil encontrar um órgão: Bach andava 15 quilômetros até a igreja para poder tocar um órgão. Esse foi o lado que me motivou, porque Bach compunha música para ícones e deuses. E “Louvado Seja Deus” também combinou com LSD, que tem a ver com “Lucy in the Sky with Diamonds”, de endeusar-se algo, de alguma coisa que se adora.

Deve Ser Amor: Depois de um dia de trabalho árduo penso o que me levou adiante e às vezes acho que foi o amor que me motivou. Seja errado, seja certo, seja pesquisa: no sentido de que o rock pode ser forte ou fraco. Depende do amor que a gente sente quando está fazendo.

Encantamento: Nessa coloquei um lado meu science fiction e fala de um ser de duas cabeças em um corpo – pensamentos diversos habitando um mesmo corpo. Existe uma tentativa de vida no lado de hibridez em que predominam a fome, a ânsia de saber e a satisfação acima de tudo. Tem ainda Cacilda, que fiz há 22 anos... me incomoda um pouco, pois estamos juntos há 22 anos e ela já existia...

Ai Garupa e Tacape: Eu já viajei de moto por todo o mundo. Essas músicas antigas vieram da bateria, o ritmo pulsante dos quilômetros, a vida, as emoções, as novidades: Born to be Wild. Imagino já é totalmente diferente, mas tem também o lado science fiction, em que a morte entra com um sentido bem mais profundo, em que as coisas místicas são substituídas por pensamentos e da pessoa que vive depois da morte sozinho e só: ser amado sem ter sexo, ouvir sem ter ouvidos, sentir cheiro sem nariz. É como uma entidade que alcança a eternidade, que pode ser encarada como uma coisa comum a todo mundo ou então uma parte muito ousada do ser humano: de ser eterna através do DNA.

Carrossel: Esta traz um lado meu de estudos de piano com parque de diversão. Esta mesma frase faz parte do “Emergindo da Ciência” (música de 1978).

Tacape: Tem a ver com pedra lascada, origem das espécies, Darwin. A origem das espécies se confunde com o lado de helicópteros: às vezes as pessoas andam em um helicóptero com todo aquele poder de bombas atômicas na mão e sentem uma certa necessidade de mostrar como um tacape, de se enfrentar com um tigre, que às vezes é mais perigoso que enfrentar Nova York com um helicóptero. Mas fica assim: um paradoxo entre a cultura atual e a da pedra lascada.

Lidando com música eletrônica e computadorizada

De certa forma é esquisito: lidar com bateria eletrônica, esta conexão com a máquina, de não se deixar envolver demais com a máquina. Aos poucos vou colocando isso no meu som, e a poesia, como forma de colorir este som. Está sendo ótimo. Fico anotando coisas no caderninho para não esquecer. Mas agora vou a Belo Horizonte pegar uns programas que você aperta um botão e já vem tudo na tela: mais rápido.

Fãs de 13, de 20, de 30, de 55 anos....

Uma vez ouvi: será que a mídia é a cultura? A minha intenção é fazer com que o meu ser produza algum efeito na vida das pessoas num sentido em que a gente faça as coisas em harmonia. Eu meço a minha importância através disso, tentando modificar para o bem. Tanto eu como eles.

Cem anos adiante

A etapa humana atual é a da piromania, em que ela se perde queimando o petróleo, quando existe o resultado da eletricidade solar, que não polui nem gasta (de baixo custo). Mas seria ainda muito fresco (cedo) para eu falar de como encaro a humanidade. Existe hoje a criogenização, da pessoa poder viver eternamente numa suspensão, criogenizada, por exemplo. Enfim, posso encarar a vida de um jeito eterno.... Criei uma fórmula, uma tentativa minha de estudo e pesquisa a respeito do tempo. Isso é bem difícil, mas a fórmula é: T = M>C. Onde T é o tempo, que é igual a massa acima da velocidade da luz. O tempo pode tornar-se elástico no sentido de sermos mais rápidos. Mas estamos muito longe desses meus planos de ciência, que só vão acontecer daqui a cem anos.

Enquanto isso, um futuro de sons...

Estou treinando no violão algumas músicas que uma hora vão aparecer. Estão semiprontas. Tenho umas duas ou três que estou trabalhando arduamente, mas ainda em estado embrionário: já criei melodicamente então não será difícil gravar...Às vezes tenho estas inspirações folclóricas, antigas, do tempo de criança. Às vezes fica alegre e é neste sentido que estou começando a compor agora.”

Produzindo e gravando Let it Bed. Ou: decolando todas as manhãs.

Entrevista via icq de Londres, com Rubstrol e John sobre as emoções por trás da gravação e produção de Let it Bed. (Novembro de 2003).

Sonia Maia: Conhecendo o Arnaldo e sua história, o que mais o surpreendeu quando você pegou o material que o Rubstrol tinha recolhido nas gravações?
John: O mais impressionante foi o direcionamento metódico que Arnaldo dava às gravações, mesmo que o resultado nos parecesse inicialmente bastante caótico...

SM – E continuou caótico? Quero dizer, quando você pegou o material final, qual era a diferença daquele dos primeiros dias?
John – Acho que as gravações do Arnaldo vêm "de fábrica" com um caos embutido...Ele foi se soltando aos poucos. Mas em todas as fases seus takes tiveram que ser decifrados para que pudéssemos captar ao máximo sua intenção...

SM – Rubstrol acabou de comentar, na mesma pergunta, que o Arnaldo trabalha com símbolos e símbolos têm uma ressonância universal que é bem independente da linguagem...
Rubstrol – Hei, Jonh, não responda "isso é problema do Rubinho".
John – O que me atraiu é que o Arnaldo é um sujeito cujos limites estão além da maioria dos artistas. Não tem censura, há uma enorme criatividade e, devido às circunstâncias, uma certa dificuldade prática em colocar as coisas em um mix de dois canais. Acho que servimos de tradutores para ele neste trabalho.

SM – Como foi este trabalho de tradução?
John – Putz, foi ao mesmo tempo tentar interferir o mínimo na idéia de Arnaldo e, na prática, interferir pacas. Porque um monte de escolha tinha que ser feita – qual canal de voz fica, se deixo um piano do início ao fim, se edito certas notas que estão meio tortas, etc...E o tempo todo pensando: isso aqui o Arnaldo vai gostar, isso é o tipo de coisa que eu esperaria dele. Foi complicado, porque ele próprio tem mil faces. Acho que outro produtor faria outro disco com o mesmo material.

SM – Quer dizer, na decisão final você optou pela fidelidade máxima?
John – Cada música apresentava algo que dava para seguir... Tem umas que a voz é quase tudo – acho essas gravações dele cantando hoje em dia tremendamente emocionantes. Mas muitas vezes segui critérios mais técnicos, algo como: nessa música aqui o que está melhor é o baixo, então vamos montar o resto em torno dele...

SM – Comente uma de suas músicas preferidas, por exemplo.
John – "LSD" ou "Louvado Seja Deus" é uma das mais emblemáticas... É psicodélica, tem aqueles trocadilhos do Arnaldo, aqueles statements dele sobre as coisas...
Outras trazem um humor que remete aos Mutantes, como "Everybody Thinks I'm Crazy", que é uma versão para uma música de um filme de desenho animado do Picapau de 1941... Num certo momento fiquei temeroso que o disco ficasse introspectivo demais. Mas o senso de humor Arnaldiano sempre volta à tona, e isso ajudou a representar a sensação de easy going que ele passa boa parte do tempo.

Rubstrol – Tem "2 Burn or not 2 Burn", que é meio Arnaldo-bigbeat.....Essa dá para dançar...

SM – Vai ganhar todas as pistas de danças. Os DJ’s vão amar!
John – Acho que tem uma coisa que vai ser importante para algumas pessoas, mas não para mim: não é um disco de rock, é um disco de canções. "To Burn..." já é mesmo hit entre os que ouviram por aqui. Tem outras, como "Bailarina", em que fica muito claro que é o novo Arnaldo que está ali, é um grande artista se exposto de uma maneira não muito habitual no nosso tempo, em que tudo é muito certinho...

Rubstrol – Sonia quer que eu comente algo sobre as músicas também...Acho que não vou entrar nessa empreitada, uma vez que seria uma tarefa vã tentar descrever a maçaroca de som que o Arnaldo é capaz de produzir. Costumo me referir ao método usado na gravação como "Captura de Vapor Acústico", o que praticamente explica como Arnaldo consegue em sua mente estar em A e B ao mesmo tempo, parando para descansar em C. Os barulhinhos e barulhões que ele criou naquele período de um mês em que passei na casa dele em Juiz de Fora têm estado entre os mais memoráveis que ouvi recentemente.

John – Tem duas músicas que foram frutos de um processo diferente. “Cacilda”, que é feita a partir de uma demo de voz e piano em fita K-7... Peguei essa gravação e montei o arranjo em cima, fazendo orquestrações do piano, dobrando frases do piano com cordas e tal, uma coisa que eu tinha um pouco de pudor em fazer – queria colocar o mínimo possível de instrumentos externos. Mas fiz um pouco, ele ouviu e aprovou, depois terminei. Tentei fazer como se tudo fosse da mesma gravação original...A outra é “Tacape”, na verdade uma gravação antiga, sem interferências, apenas com a restauração do áudio.

SM – Alguma nova idéia para clips depois desse de animações com os desenhos de Arnaldo?
Rubstrol – Seria legal um clip com ele voando sobre a cidade.... Seria legal um clip em que ele converse com os animais. Seria legal um clip em que ele vá ao futuro e volte ao presente....

John – Arnaaaaaaldoooo!!!!!!!!!!!


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(1) Biografias citadas ou para futura referência: A Divina Comédia dos Mutantes, um compêndio de quase 400 páginas do jornalista Carlos Calado, lançado em 1995. Apesar de seu caráter não-oficial, foi muito elogiado pela crítica. Artigo de 13 páginas publicado em duas edições da revista BIZZ, 1987, de autoria de Thomas Pappon.

(2) RubsTrol vive em Londres desde algum momento dos anos 90. Junto com John, montou a banda Sexo Explícito nos anos 80, que se desfez no final da década. Hoje cuida de pessoas especiais e produz vídeos tão bons quanto sua obra como artista pop; como um dos compositores e poetas mais inteligentes e picantes do rock-pop brasileiro. As pérolas que produz hoje em seu estúdio caseiro são regularmente fisgadas pelo Pato Fu e incluídas no repertório da banda.

(*) Sonia Maia foi uma das jornalistas mais importantes na cobertura da explosão do rock-pop brasileiro dos anos 80, tendo a maioria de suas matérias publicadas na revista BIZZ, maior revista do gênero já editada no Brasil e que se desfez em meados dos anos 90. Seu maior interesse era a descoberta de novas bandas, o que a levou numa tour de cinco anos pelos porões do rock-pop das principais cidades do país. Viveu em Londres de 1999 a 2009, quando retorna ao Brasil.